Próximo daquela floresta há um cemitério.
Há um cemitério com tumbas de idéias que se foram e animais que já partiram.
E eu, o
mocho, quis olhar de cima aquele lugar. Sai naquela manhã enquanto o grande espírito
vivo e amarelo aparecia aos poucos do horizonte e clareava o lugar. Digo espírito,
pois sei que aonde chega o espírito movente a tudo ilumina.
De cima vi
e do alto vi uma cruz. E por cima da cruz ele estava, estava em cima da cruz
que era de concreto. E era ele, o pardal. E nesta cruz de concreto havia um
homem de bronze. Não o conhecia, mas estava nas cruzes do cemitério.
Disse:
- Que
fazes, oh pequeno pardal? Por que estais a cantar em cima de uma cruz de concreto
com uma peça de bronze em sua fronte?
- Ofende-me
grande pássaro noturno! Como criatura da noite que és não pode entender a vida.
Este homem morreu por mim! Assim contam as histórias dos antigos e é vivo como
dizem!
- Não
compreendo o porquê de te ofenderes. -disse o mocho- Como pode dizer que é
homem este bronze e ofender-se se eu disser o contrario? “Homem” não é apenas a
forma que deram a este bronze? Uma imagem?
- Tenho fé,
mocho! E não cabe entre nós argumentar! – falou o pequeno acalmando-se – Entre teus
pensamentos e minha fé há um abismo. Um abismo tal que seria trabalhoso juntar
e contigo fazer alguma ponte.
- Hmmmm...
E tu sabias que a razão pode devorar uma fé tão pequena, a fim de poder haver crendices
mais elaboradas até?
- Não,
mocho! – disse o pequeno escondendo-se por detrás da cruz – A cruz me
protegerá. Por detrás dela não me alcanças e não poderia devorar a mim e nem
mesmo a minha fé!
- Não te
percebes que quando te escondes não me vês? Assim posso ir por cima desta cruz
pulando-a para pegares! Mas não o farei ainda... Pois não me respondeste.
O pardal
olhou o mocho, e suspirou. Depois de um curto silencio disse:
- Aqui há uma
cruz de concreto e esta cruz de concreto é estática. Na cruz vês um homem de
bronze, mas não é um homem... É o espírito vivo. Não... É a própria vida! Muitos
pardais o veneram e muitos esperam a sua
volta.
- Tolo! – Disse
eu, o mocho – Como pode esperar a volta de alguém que se foi? O grande espírito
nasce e morre o mesmo todo o dia lá no alto e nem eu alcanço, mas isso com um
homem? Sei que nascemos e morremos e a natureza nos melhora e conduz. Por isso
um homem não pode voltar igual a ele mesmo!
- Sim,
mocho, a natureza nos melhora e sua força nos conduz, mas nós devemos nos
desvincular dos instintos que ela nos colocou. Apesar de Ele nos ter criado e a
natureza, sentimos nós que devemos sair desta e apenas a Cristo nos apegar.
- Quê diz?
Dizes tu que este nos criou e a natureza? – Disse o mocho inconformado – Tu não
vês que contradição diz e como dizes contradição? Ninguém pode criar a natureza
e os instintos e querer destruí-los! Deixes este Cristo de bronze e procuras o
vivo para louvar! Crê na alma e olha a natureza e despertas!
Nesta hora
o pardal canta e uma musica de louvor canta o pardal. Mas, para o mocho é só ruído,
pois pardais não cantam belamente como as andorinhas. O louvor era alto como um
chamado a alguém distante.
O mocho
olha para o pardal e diz:
- Pare de cantar, senão te
devorarei! Não conheces razão!
-Então
continuarei a cantar, não me interessa a razão! – e continua o corajoso pardal.
Quando o
mocho levantou suas garras em direção ao pardal, com sua visão ao longe viu...
Eram muitos... Muitos pardais.
O mocho
sabe que um pardal não pode machucá-lo, mas tantos de outras florestas...
Chegaram e
rodearam o mocho em seu vôo, parecendo um furacão de pardais. Todos cantando em
coro aquele hino de louvor.
- Não aguento!
– Disse o mocho – não suporto ruídos tão altos! Estes sons... Ferem-me!
Ferem-me os sons de uma multidão sem argumentação.
E assim o
mocho vai. Deixa-os louvando seu Cristo de bronze e vai para fora longe daquela
tumba. E volta a sua toca.
Diz o
mocho:
- E os
pardais, como gesto de união até hoje se defendem sem defesa, mas um dia será
aquele em que o pardal sucumbirá ou voará daquela cruz.
Ele, o
pardal, a fé, a esperança e o apelo ao invisível, o “crente”
Porra XD
ResponderExcluirA escrita me lembrou Nietzsche e suas metáforas, com aquelas discussões épicas.
O texto é bastante claro, muitos tem medo de lançar um olhar crítico sobre a vida, percebê-la e perceber a si mesmo, como envolvido.
Infelizmente ficamos nós, dispersos em meio a multidões que não percebem a si mesmas, nem o movimento das coisas. A camada da realidade que elas acessam é somente a mais externa, da ordem dos sentidos. Como fala Josten Gaarder no Mundo de Sofia: E os filósofos gritam na pelagem do coelho, mas aqueles que desceram mandam-lhes calar a boca.
Melhor frase do texto: Não te percebes que quando te escondes não me vês?